animated gif maker
make avatar
make avatar

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Ninguém Me Habita


Ninguém me habita. A não ser
o milagre da matéria
que me faz capaz de amor,
e o mistério da memória
que urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa me rever no outrora.
Ninguém me habita. Sozinho
resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiúras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.
Thiago de Mello

terça-feira, 28 de abril de 2009

Nunca e Sempre


Sempre cheguei tarde
ou cedo demais.
Não vi a felicidade acontecer.

Nunca floresceram
em minha primavera
as rosas que sonhei colher.

Mas, sempre os passarinhos
cantaram
e fizeram ninhos
pelos beirais
do meu viver
Helena Kolody

Sonhar


Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num vôo poderoso e audaz da fantasia.

Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.
Helena Kolody

O Grande Momento


A varanda era batida pelos ventos do mar
As árvores tinham flores que desciam para a
morte, com a lentidão das lágrimas.


Veleiros seguiam para crepúsculos com as
asas cansadas e brancas se despedindo,
O tempo fugia com uma doçura jamais de
novo experimentada.


Mas o grande momento era quando os meus
olhos conseguiam
entrar pela noite fresca dos seus olhos...
Augusto Frederico Schmidt

sábado, 25 de abril de 2009

Mistérios


Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por
[ mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu
[ nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.

Adalgisa Nery

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Samba Canção


Tantos poemas que perdi,
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone - taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
Ana Cristina César

quarta-feira, 22 de abril de 2009


Tem dias que não sei quem sou
Sou sombra do que já fui
Arremedo do que serei
São dias de inautenticidade
Onde minha essência se perde
O espelho não me reconhece
E eu não sei o que acontece...
Nina Victor

O Catador


Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais - o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.
Manoel de Barros

Alma Perdida



Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!...
Florbela Espanca

Confissão


Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!
Mario Quintana

Acordar, viver


Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.


Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?


Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?


Ninguém responde, a vida é pétrea.
Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 21 de abril de 2009


Derramei três lágrimas:
a primeira escorreu pela face e perdeu-se na boca;
a segunda morreu achatada contra o assoalho;
a terceira caiu na tua mão.
E foi a que mais doeu.
Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Amei o Amor


Ansiei o Amor.
Sonhei-O
Uma vez, outra vez (Sonhos Insanos)!
E desespero haja maior não creio
Que o da esperança dos primeiros anos.

Guardo nas mãos, nos lábios
guardo em meio do meu silêncio, aquém dos olhos profanos,
Carícias virgens, para quem não veio
E não virá saber dos meus arcanos

Desilusão tristíssima, de cada momento
Infausta e merecida sorte
de ansiar o Amor e nunca ser Amada

Meu beijo intenso e meu abraço forte
com que pesar penetrareis o Nada
levando tanta vida para a Morte...
GIlka Machado

sábado, 18 de abril de 2009

A Estrada Não Trilhada




Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se,
mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria.
Assim, por longo tempo eu ali me detive,
e um deles observei até um longe declive
no qual, dobrando, desaparecia...

Porém tomei o outro, igualmente viável,
e tendo mesmo um atrativo especial,
pois mais ramos possuía e talvez mais capim,
embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,
os tivesse marcado por igual.

E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos
de folhas que nenhum pisar enegrecera.
O primeiro deixei, oh, para um outro dia!
E, intuindo que um caminho outro caminho gera,
duvidei se algum dia eu voltaria.

Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
a estrada divergiu naquele bosque – e eu
segui pela que mais ínvia me pareceu,
e foi o que fez toda a diferença.
Robert Frost

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Caminho


Caminho de mãos dadas com a vida

e nesses percursos lembro das escolhas

e desvendo as folhas, cores, mistérios,

deixando perfumes de flores no ar.

Quanta ousadia é a minha caminhada!

Pisando em poesias!
Conceição Bentes

domingo, 12 de abril de 2009

Com Licença Poética


Quando nasci um anjo esbelto,
Desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
Esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
Sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
Acho o Rio de Janeiro uma beleza e
Ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
Já a minha vontade de alegria,
Sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado

sábado, 11 de abril de 2009

Se Visse Por Acaso Um Anjo


Se visse por acaso um anjo, não me surpreenderia.
Não é preciso assistir a milagres para dizer que existem.
A própria vida é um milagre.
E milagre esta esperança que não se acaba.
Falar , cantar, amar: eis o milagre.
Sofre: eis o milagre.
Morrer: grande milagre!
Constantemente nos sondamos como quem percorre
[uma cidade estranha.
E vivemos na atmosfera de uma permanente descoberta.

Para que então a necessidade do milagre?
Não sonhamos olhando a noite?
Não desejamos o intangível?
Não vemos sempre novas estrelas?
Não nos banhamos na luz matinal, retemperadora?
Não choramos diante dos mortos,
Embora para eles tenha deixado de existir a morte?

Viver: grande milagre!
Não bastaria ao homem a presença de um anjo,
Porque o negaria
Como negou a Cristo.
A vida exige sempre.
A morte exige sempre.
Por isso – vida e morte – serão sempre um perene milagre
Alphonsus de Guimaraens Filho


terça-feira, 7 de abril de 2009

Eu, Poesia



Nasci poesia,
numa tarde sem lua.
nem sei se merecia;
me criei na rua
encantada,
onde tem um jardim de acácias.
abençoado por pássaros, fada;
jurado de versos.
me fiz canto,
brinquei com rimas,
remei em lagos azuis.
no meu canto
lidei com sonetos,
trovas, acrósticos.
redondilhas, duetos.
tanto disse de amor,
amor me transformei.
nas noites de brilho,
declamei estribilhos,
fui poeta, mutante, rei.
mas que ironia...
por overdose,
ou virose
morri poesia!...
Gustavo Drummond

domingo, 5 de abril de 2009

Acorrentados

Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.
Paulo Mendes Campos

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Piano de Bairro


Na rua sossegada onde moro, - à tardinha,
quando em sombras o céu lentamente escurece,
- um piano solitário, em surdina, - parece
acompanhar ao longe a tarde que definha...

Nessa hora, em que de manso a noite se avizinha,
seus acordes pelo ar tem murmúrios de prece...
- Ah! Quem não traz como eu também, na alma sozinha,
um piano evocativo que nos entristece?

Há sempre um velho piano de bairro, esquecido
na memória da gente, - e que nas tardes mansas
sonoriza visões de outrora ao nosso ouvido.

Seus monótonos sons, seus estudos sem cor,
repetem no teclado branco das lembranças
o inconcluso prelúdio de um longínquo amor!
J. G. de Araújo Jorge

A Poesia Se Esfrega Nos Seres e Nas Coisas

Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo que teus olhos vêem,
Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma virgem esquecida?
Num circo, nunca se apoderou de ti, um amargor sutil
Vendo animais amestrados
E logo depois te mostrarem
Seres humanos imitando um reptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgastes diante de um avião
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes
E que é tamanha!
Adalgisa Nery

Eu e Tu


Dois! Eu e Tu, num ser indissolúvel! Como
Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,
Aspiram a formar um todo,– em cada assomo
A nossa aspiração mais violenta se ateia...

Como a onda e o vento, a lua e a noite, o orvalho e a selva,
– O vento erguendo a vaga, o luar doirando a noite,
Ou o orvalho inundando as verduras da relva –
Cheio de ti, meu ser d'eflúvios impregnou-te!

Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,
O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,
O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,
– Nós dois, d'amor enchendo a noite do degredo,

Como parte dum todo, em amplexos supremos
Fundindo os corações no ardor que nos inflama,
Para sempre um ao outro, Eu e Tu pertencemos,
Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama.
António Feijó

Esquadros


Precisei aparar as arestas com lâmina afiada para tornar minha emoção seca, dura, um ponto, um jato, uma batida e só. Feito isso, olhei os objetos e chamei-os simplesmente de "objetos", esse nome angular. A realidade era um quadrado. E era perfeita, exata, como são exatos os quadrados.

Cansei de se excessiva. Agora eu quero o equilíbrio-zen, a sobriedade exígua de uma reta.
Quero ser me-ti-culo-samente japonesa. Nem mais, nem menos. O neutro.

Maria Helena Latini

?


Um ponto de interrogação se parece com um bicho enrodilhado, feto-bebezinho, uma barriga grávida, um cajado. Um fio de cabelo, uma orelha e seu brinco, o Continente Africano, a América do Sul. A Bahia, o mapa do Brasil, a solidão sinuosa da metade de um coração. Uma curva de caminho - e sua pedra - (ai, sempre uma pedra...), um viajante e sua mochila.
Um ponto de interrogação interroga-se a si mesmo.
Solitário, reflexivamente arqueado,
O Pensador de Rodin, o homem e seu enigma
que o devora, devora. Devora.
Maria Helena Latini

Short Trip

minha cidade
cai pela janela
como um cisco

meu olho
caleidoscópio
é o coração que acolhe
fragmento por fragmento
até que toda cidade
e sua história
caiba dentro

nessa rua, por exemplo,
já passei há muito tempo
mas não tinha esse olhar
indo embora

para o futuro,
a memória desse momento
que passou agora
será a lembrança de outro
e ainda outro mais antigo

caio como um cisco
na cidade
somos, as duas,
uma rápida paisagem.
De passagem.
Alice Ruiz

Deusa Atena


Deusa Atena,
por favor,
atrasa a Aurora.
Deixe que dure
um pouco mais
a trégua,
esse outro nome do amor,
antes da guerra.

Adia a lembrança
de que existe o efêmero
mera armadilha
de um dia após o outro.
Faça que a noite,
esse simulacro do eterno,
se estenda um pouco mais.

Não deixe que traga ainda o sol
com sua luz que tudo acende,
e a todos cega
nos fazendo esquecer da morte
essa outra vida
no reino do não ser.

Espera, Aurora,
aprende a Paciência
para quando o momento
do fim da existência,
for agora.

Mas até lá, Atena
deixe que venha,
sem demora,
a Aurora.
Alice Ruiz

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O Fim da Noite


A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.

Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.
Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.

E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.
Adolfo Casais Monteiro

Agora Mesmo

Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós também

Está gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com ele

Os amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a
[despedir-se

A Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amem
Manuel Alegre

Manhã



Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar

Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos

Educadamente mortos
Mia Couto

Na Ilha Por Vezes Habitada


Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago