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domingo, 27 de setembro de 2009

Carência


Não sei sobre pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que minha solidão deveria ter asas.
Alejandra Pizarnik

A Hóspede


Não precisas bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.
Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.
O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram à relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.
Dorme. Sonha. Desperta. Da colméia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.
Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha - e esquece.
Guilherme de Almeida

sábado, 26 de setembro de 2009

Solidão


Na solidão na penumbra do amanhecer.
Via você na noite, nas estrelas, nos planetas,
nos mares, no brilho do sol e no anoitecer.


Via você no ontem , no hoje, no amanhã...
Mas não via você no momento.

Que saudade...
Mario Quintana

segunda-feira, 21 de setembro de 2009


Tenho palavras que te procuram,
que se acendem nesta existência suave;

palavras para seguir caminhos,
para te abrir os dias;

palavras partículas de fogo
que acarinho para os momentos precisos
nos seus puros abandonos;

palavras verticais como chamas,
que te chamam na procura,
mais claras que o dia.

Com palavras de lua e de vento
invento veredas de palavras
que adoçam os silêncios
e explicam as madrugadas.

Palavras que só a ti direi.
®efeneto

O Tempo


Ela queria tanto,
Para poder esquecer
A cor cinza de sua nascença,
Ganhar de presente, no dia de seu aniversário,
A delicadeza de uma boneca de trapo.

Queria tanto, tanto,
Que acabou comprando,
Naquela tardinha, em que abandonada,
A chuva lhe caia copiosamente dentro d’alma,
Uma boneca fria de porcelana fina.

Pena que já era tarde.
Ela, agora, não tinha mais tempo para esquecimentos.
Não tinha mais tempo para delicadezas.
Oswaldo Antônio Begiato

domingo, 20 de setembro de 2009

Asas e Azares

Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais que eu fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não dói.
Leminski

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Revisitado


Bem-vindo à minha casa
mas se quiseres ir ao sótão
traz as velas , algo ali vive
que não permite a crua luz
escancarada.

Eu o revisito tantas vezes
e não me incomodam seus trastes,
alguns ratos - eles me convivem,
eu sou o velho hóspede da casa.

Subo e desço no cotidiano ato,
gosto de ir às vezes regar,
antes que esquecidas mal cheirem,
as flores de meu cercado
(com a palma de meus olhos
acaricio as ternas fugacidades).

Desço e subo, vou por estes cômodos
sonambulando.

Acomoda-te em minha casa
mas se quiseres entrar em meu sótão
acende as velas.

Ali já estou aclimatado,
sou amigo do gato, eu furto a luz
pelas mínimas frestas do telhado.
Ali todas artimanhas já incorporei,
eu sei dos hábitos, eu me convivo -

eu sou o velho fantasma da casa.
Fernando Campanella

Os Lírios


Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos — perfeitos! —
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranqüila.
Henriqueta Lisboa

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Lendas Perdidas


É a saudade áspera de mim mesmo
O buraco negro por onde me entranho
Nas profundezas de meu espírito revel
E reviro, aflito, minhas gavetas internas
À busca das lendas que faziam do mundo
Meu mundo azul e coberto de quimeras.

Não me lembro mais onde elas estão;
Eu, temeroso, as guardei bem guardadas
Quando era ingênuo escutador de estórias.
Oswaldo Antônio Begiato

Água Furtada


Sempre pensei que água furtada
Fosse a crueldade que faziam com a sede.

Depois de velho é que fui descobrir
Que, por falta de castelos com torres,
Água furtada é onde sempre
Esteve escondido o meu amor.

Crueldade que fizeram com minha sede.
Oswaldo Antônio Begiato

Biografia


Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
e não serei eu.

Repetirás o que ouviste,
o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,
e nada disso serei eu.

Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
e continuarei ausente.

Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
isso seria eu.

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.
Como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres como a cascata pelas pedras.
Que mortal nos poderia prender?
Cecília Meireles

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Flores


Há flores em meus olhos
que não nascem nas primaveras
que são de infinitas esperas
azuis, intactas, nascem à revelia
orvalhadas pelas lágrimas
caladas da minha poesia.
Tonho França

Trégua

Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá.

Adélia Prado

A Serenata


Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
Adélia Prado

Um Sonho


Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer,
por isso o escrevo tal qual se deu:
era que me arrumava para uma festa onde eu ia falar.
o meu cabelo limpo refletia vermelhos,
o meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo,
o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam
do contato da seda. Falava-se, ria-se, preparava-se.
Todo movimento era de espera e aguardos, sendo
que depois de vestida, vesti por cima um casaco
e colhi do próprio sonho, pois de parte alguma
eu a vira brotar, uma sempre-viva amarela,
que me encantou por seu miolo azul, um azul
de céu limpo sem reverberações, de um azul
sem o “z”, que o “z” nesta palavra tisna.
Não digo azul, digo bleu, a idéia exata
de sua seca maciez. Pus a flor no casaco
que só para isto existiu, assim como o sonho inteiro.
Eu sonhei uma cor.
Agora, sei.
Adélia Prado

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Moradas do Silêncio


O silêncio tem muitas moradas,
todas elas
com várias portas e janelas,
saídas e entradas.
São moradas que o tempo
ergue em qualquer lugar
sem recear que o vento
as venha habitar.
Mas nenhuma tão cheia
de perfume do mar
como a que tenho ideia
de ler no seu olhar.
Torquato da Luz

O Guardador de Rebanhos XVI

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças - tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
Alberto Caeiro

O Meu Olhar é Nítido Como o Girassol


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Alberto Caeiro

Soneto


Desponta a estrela d'alva, a noite morre.
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando, corre.

Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.

Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
Às carícias d'aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!

Porém minh'alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
- Oh! mundo encantador, tu és medonho!
Fagundes Varela

Não Te Esqueças de Mim


Não te esqueças de mim, quando erradia
Perde-se a lua no sidéreo manto;
Quando a brisa estival roçar-te a fronte,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.

Não te esqueças de mim, quando escutares
Gemer a rola na floresta escura,
E a saudosa viola do tropeiro
Desfazer-se em gemido de tristura.

Quando a flor do sertão, aberta a medo,
Pejar os ermos de suave encanto,
Lembre-te os dias que passei contigo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.

Não te esqueças de mim, quando à tardinha
Se cobrirem de névoa as serranias,
E na torre alvejante o sacro bronze
Docemente soar nas freguesias!

Quando de noite, nos serões de inverno,
A voz soltares modulando um canto,
Lembre-te os versos que inspiraste ao bardo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.

Não te esqueças de mim, quando meus olhos
Do sudário no gelo se apagarem,
Quando as roxas perpétuas do finado
Junto à cruz de meu leito se embalarem.

Quando os anos de dor passado houverem,
E o frio tempo consumir-te o pranto,
Guarda ainda uma idéia a teu poeta,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Fagundes Varela

domingo, 6 de setembro de 2009

Pour Christiane


Viver é sobreviver ao vir e ver
É ser agora todos esse instante
Inteiro momento.

É renascer aqui e adiante
Como o sol a cada madrugada
E mais um pouco daqui a pouco
E depois mais, e depois mais
No rasgar-se das manhãs novas.

É sofrer calado na dor se a dor não cala
É amar na cara do amor se o amor te encara
É crer em ti a partir do teu querer
É cravar na vida os dentes do rir
E sorrir como um arco-íris
Alegremente.
Fernando Magno

Tempo Trans-verso


Meu verso é chão de caminho diverso
Retiro azul do meu pensar
Fome e sede – dores que não sei... Pressenti.
Gula do sol de teu céu desancorado
Adoçante mar
Frouxas verdades empinando-se pro futuro
Soluçantes presenças de pretéritos expiados
Inacabados ais.

Meu verso foi grito de rua
Pra que lembrasse de mim os que me viram passar
Pra que coubessem em mim todos os que amei
Por isto destravo nesta hora este canto entre amarras.

Meu verso é tempo que não meço
Vai por aí por onde nem sempre vou
É rio corroendo barrancos, margens que me viajam
Águas assanhadas que me trazem cobiças
Penetrando meus ossos
Sonhos doídos, moídos de amor. Destroços.
E eu navegando... Navegue assim.
Fernando Magno

sábado, 5 de setembro de 2009

Canção Pensativa


Um toque da solidão,
e um dedo severo me traz à realidade:
não depender dos meus amores,
não me enfeitar demais com sua graça,
mas ver que cada um de nós é um coração sozinho.


Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar,
sabendo que mesmo se nesse leito frio e branco,
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente,
levanta-se paredes para sempre!


(E para sempre a amante solidão nos chama e abraça.)
Lya Luft

Canção de Alta Noite


Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.
Cecília Meireles

Cântico XXIV


Não digas: este que me deu corpo é meu Pai.
Esta que me deu corpo é minha Mãe.
Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram
Em espírito.
E esses foram sem número.
Sem nome.
De todos os temos.
Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje.
Todos os que já viveram.
E andam fazendo-te dia a dia
Os de hoje, os de amanhã.
E os homens, e as coisas todas silenciosas.
A tua extensão prolonga-se em todos os sentidos.
O teu mundo não tem pólos.
E tu és o próprio mundo.
Cecília Meireles

Letra Para Um Hino


É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.
Manuel Alegre